sexta-feira, 19 de novembro de 2010

LEITURA OBRIGATÓRIA

 Nelson Vinencci é músico, cantor e compositor e escreve regularmente no blog Espalha Brasa.
TEMPO DE CHEIA
Pé rachado, calor tenebroso, uma secura horrível no capinzal, nas várzeas é só um descampado, uma lama seca que deixa o curumim truíra. Na terra firme a secura emagrece as copas das árvores, só a lua que perambula no infinito como uma cabocla de pacurú no relento, fazendo o caboclo espiar a noite desconfiado do fim do mundo, o céu da seca é só fumaça das queimadas.
A seca deste ano foi perversa e levou as águas do rio mar para longe do porto de casa, dos lagos, das beiradas e das barranqueiras. O Amazonas, riozão de fartura e peixe grande encolheu, parece praga do Porfiro, caboclo enjoado, ferrado de arraia beiju, que nem vinte garrafadas de Pauxís curou a pereba deixada rente o mocotó do peste.
Porfiro descia na beira do Amazonas fim da tarde, para fazer suas necessidades e com duas cuias, uma pitinga com sabão grosso e outra gitinha, com uma talagada de pinga bardiada de Abaeté, se botava a diante do porto em uma língua de areia que o rio deixa para lamber o barranco até ele desabar, era ali que Porfiro amassava o barro e tomava seu banho sagrado.
Foi que uma arraia dessas beijuzinho, deu-lhe uma arpoada no pé direito subindo o osso do mocotó que deixou Porfiro, praguejador das cheias, pois culpava a enchente por trazer essas pragas do rio que ele tinha certeza, mandadas por algum vizinho dele só para lhe arpoar e lhe judiar de dor, no frio que o vento assobiava, nas madrugadas das cheias de novembro.
Já no Sacurí a cheia era uma benção, vinha trazendo muita fartura e ninguém sabia de onde, talvez do além das profundezas do lago do Espelho da Lua das Icamiabas, Índias guerreiras da banda de Faro. A cheia curava todas as doenças da seca, trazia o limo que alimenta o acari e os peixes lisos mais bem criados dos rios da Amazônia.
Tio Capela amanhecia com uma panela de mingua de arroz com castanha do Pará no fogão de lenha, depois dum gole glute, glute num café forte e cheiroso, arrumava os bichos de criação: picote, pavãozinho, uns trinta bodes magrelos resquício da seca e a vara de porcos que ele cuidava para saborear um leitão a pururuca na época do Natal e Ano Novo.
Tio Capela acreditava que comer porco no fim do ano dava sorte, porco fuça pra frente, e é pra frente que o caboclo tem que ir no ano que inicia. Nós todos fomos criados com as idéias meio sem rumo do Tio Capela, pois meu pai gostava muito dele, ele era genial para umas coisas, para outras simplesmente era indiferente.
Foi no tempo de cheia que eu vi o maior luar da minha vida, subindo o Erepecurú noitona de lua cheia, rio Trombetas quieto, silencioso espelho d’água, eu subia o rio no rumo da cachoeira Porteira, quando numa dobrada do rio, que o barco varou num furo de céu, água e floresta, boiou uma bola no horizonte do tamanho do mundo, a coisa mais linda que até hoje avistei no horizonte...
Passei a mão na viola e ponteei uns três acordes, procurei uma pinga que o Manoel Raimundo levava, uns tamarindos azedos que ficava numa vazilha lugar de Nescafé e apertei a primeira, apreciando a bicha se equilibrando entre uma capoeira e uma serra nas copas das castanheiras do alto Trombetas, que maravilha!
Por fim sou pé-requé da Amazônia, tempo de cheia sou acostumado a apreciar as chuvas da manhã tomando um mingau igual meu Tio Capela. Levanto da rede no rumo do fogão, boto até no tampo, numa cuia lugar de tacacá, o mingau de castanha, sapeco um pó de canela pra empoeirar e formar cacuruta no bicho e me boto numa rede sem beiral a espiar o tempo...
E não me venha falar em trabalho, ninguém leva nada dessa vida, então faço o que tenho vontade, pois quando a chuva vem nas manhãs da Amazônia, o cinza do céu faz um escuro úmido no meu quarto, penso na minha cabocla que passa esbarrando o quadril na rede, sem anágua, enrolada num pano amarrotado do amaciar da noite... Rumm!
Ai me vem a certeza: É TEMPO DE CHEIA.