
Historiador e engenheiro florestal é fundador do ICBS, o maior acervo cultural de Santarém
Considerado um dos maiores guardiões da
cultura santarena e amazônica, Cristovam Sena, há décadas presta um
serviço imensurável para a memória e história da nossa região. Tal ação
destemida e voluntária, contribuiu e contribui com gerações de
estudantes e pesquisadores, por meio do Instituto Cultural Boanerges
Sena (ICBS).
A reportagem da TV Impacto e Jornal O
Impacto visitou o ICBS, e entrevistou Cristovam Sena, que também fez
fama no futebol, onde deu grandes alegrias aos torcedores de Santarém e
do Pará, jogando pelo América e pelo Paysandu. Acompanhe a entrevista:
Jornal O Impacto: Como surgiu a ideia, e qual o objetivo do ICBS?
Cristovam Sena: Este
ano completamos 37 de fundação. Iniciamos em 1981. Eu saí de Santarém em
1968 para estudar e jogar bola, retornei em 1979 casado e em 1981
começou na sala de casa a ideia de se criar biblioteca. Logicamente que
ninguém imaginava que iria chegar onde chegou hoje em dia. Mas tudo
começou de uma ideia nossa, minha esposa Rute topou. Porque se ela fosse
contra, o negócio não chegaria onde chegou. A primeira estante que
compramos para cá, que Santarém não tinha supermercado, não tinha
comércio, o supermercado que tinha era a Cobal, onde hoje é o Detran, e
pouca coisa, ainda. Então mandamos buscar pela Hermes. Hoje você compra
tudo pela internet, antes era por catálogo da Hermes. Depois os livros
foram aumentando, eu me interessando pela história da região, como
sempre gostei da história da Amazônia, da borracha de Fordlândia e
Belterra. As coisas foram começando, pois toda vez que eu viajava eu
encontrava livros sobre a nossa região e comprava. Íamos em sebos e o
negócio foi aumentando. Chegamos em um momento em que a sala não dava
mais, e construímos em cima da cozinha de nossa casa, nós ampliamos,
fizemos o segundo andar e a biblioteca foi para lá. Começou com 60
metros quadrados, depois ficou pequena e fizemos 100 metros quadrados
(10m por 10m), com uma entrada por fora da nossa casa, para os alunos
estudarem, sempre pensando em socializar a informação. Nosso acervo para
disponibilizar à sociedade, pois não adiantava termos um acervo muito
bom se o povo não tivesse acesso. Eu sempre tive a ideia, porque eu
estudei de graça no Frei Ambrósio. No Dom Amando eu estudei pago pelo
América, ou seja, eu jogava no América e o Ivan Toscano pagava. Eu
estudei universidade de graça. Como é que eu vou retribuir tudo isso que
eu ganhei de graça, esse conhecimento, essas informações? Vou retribuir
para sociedade criando um espaço disponível para que os alunos viessem
estudar de graça também. Aqui estamos comemorando neste dia 23 de
setembro o aniversário de 37 anos do ICBS. Eu coloquei o nome do meu
pai, que foi meu grande incentivador para ler. Ele nasceu no dia 23 de
setembro de 1917, então, eu coloquei a data da fundação para 23 de
setembro de 1981.
Jornal O Impacto: Como é que você avalia hoje a questão da cultura em Santarém?
Cristovam Sena: Aonde
tem gente reunida, tem cultura. A relação do homem com a natureza,
resulta em cultura. O entendimento disso aqui, nós temos que ter. A
cultura sempre existiu aqui, como a cultura indígena, depois chegaram os
jesuítas, teve a cultura antes e depois da Cabanagem. Então, a cultura
vai se modificando em função da própria evolução da comunidade. Se você
pegar os relatos do Bettendorf, os caras falavam que tinha gente que
tocava instrumentos, existia a música em Santarém naquele tempo. Temos
uma cultura própria, nossa música é nossa mesmo; temos bons pintores,
músicos e artesãos. Temos bons pesquisadores, enfim, possuímos uma
história rica que demonstra que a nossa cultura é pujante. Lógico que
tem momentos que ela deveria estar mais apoiada, com mais incentivo. O
que falta em Santarém é um pouco mais de incentivo, de criar escolas.
Porque existe uma diferença muito grande entre cultura e entretenimento;
o entretenimento visa lucro e a cultura não visa lucro, a cultura visa a
sensibilidade de quem a aprecia, te faz pensar; o entretenimento não
leva ninguém a pensar. Eu vou definir: um te faz pensar, já o outro não
leva a pensar. A cultura precisa de incentivo, como? Criando escolas.
Santarém já teve uma escola de pinturas, na música nós estamos bem
servidos, então, é esse o incentivo. Quando você pega o entretenimento,
você tem que dar para aquelas pessoas que são as promotoras do evento.
Toda vez que eu vejo o Município gastando muito dinheiro com
entretenimento eu fico triste, porque isso tem que cair na mão dos
promotores de eventos, se der lucro é deles, se der prejuízo é deles. O
Município tem que fazer a estrutura para que o evento aconteça nas
praças e no estádio, mas quem deve contratar artistas, quem deve pagar o
cachê e o deslocamento, tem que ser o promotor do evento. Já existe até
cursos de Universidade sobre promoção de eventos, preparando as
pessoas, mas é difícil porque a população quer ver um cantor que custa
não sei quantos mil para chegar aqui, e o Município tem que bancar com
R$ 200 mil. Se não fizer isso, o cacete come!
Jornal O Impacto: Em relação a esse acervo todo, você adquiriu tudo, ou tem doação?
Cristovam Sena: Tem
doações e continuamos aceitando essas doações. A grande vantagem do ICBS
foi a credibilidade que adquirimos com serviços que prestávamos e
prestamos. A pessoa sabia e dizia assim: “Eu vou dar, porque vai ficar
lá e não vai ser vendido, vai ter utilidade, vai ter zelo, e vão ver e
usufruir dos benefícios que essa informação pode trazer para os
consultantes”. Então, através disso, começamos esse empreendimento. Hoje
temos jornais, revistas, livros, mapas, quadros de artistas locais,
fotografias. Nosso acervo fotográfico é fantástico.
Jornal O Impacto: Hoje, dia 14
de setembro, está circulando em Santarém e outras cidades da região a
edição impressa do Jornal O Impacto de nº 1215. O ICBS tem aqui a edição
número 01 do Jornal O Impacto, e que já está digitalizada?
Cristovam Sena: Nós
temos um site do ICBS, a uns 3 anos, que é www.icbsena.com.br, lá tem os
acervos dos jornais e tem a do Impacto desde o número 1. Estamos nesse
trabalho diário, paulatinamente, de catalogar, preservar e registrar.
Para você ter uma ideia, eu calculo toda vez que vou começar a mexer nos
negativos, eu tenho uma visão alterada de que o volume é maior; eu
calculava 100.000, depois passou 120 mil, mas eu mexi em umas caixas
agora, que eu calculo que vai dar de 140 a 150 mil negativos de
fotografia. Esse acervo felizmente caiu na nossa mão, através do nosso
amigo do jornal de Santarém, o Júlio César, e que eu agradeço aqui; um
dia estávamos tomando uma cerveja não sei aonde, eu dou valor em uma
cerveja e ela é importante no relacionamento, foi exatamente na hora da
cerveja que veio a ideia, ele disse: “Cristovam, vai comigo no jornal
que eu tenho um negócio lá e eu quero ver se lhe interessa”. Eu fui lá,
me interessei e trouxe um acervo espetacular de fotografias de jornais e
principalmente fotografias impressas. Depois eu tive que fazer todo um
arranjo com as fotografias já reveladas e comprei álbuns para colocar
tudo bacana, para identificar o que é sociedade, o que é esporte, o que é
carnaval; fizemos um trabalho bacana. Quando começou, tem várias
pessoas que em termo do acervo, o cara vai de mudança e diz: “Cristovam,
estou indo embora, vem buscar aqui. Meu filho se formou e agora pega”, e
eu vou só recebendo. O João Sena quando viajava e encontrava qualquer
coisa interessante, trazia aqui para o ICBS, para doar livros de 1800 e
tal. Ele me trouxe livros do Pará, um diário de 1898. Eu tenho até medo
de citar, porque acabo esquecendo, mas eu recebi de muita gente, de
muitos amigos que doaram as coisas para nós e aqui foi aumentando e
quando eu olhei o nosso acervo em termo de revistas, de fotografias, de
mapas, está muito grande. Sobre a história de Santarém e região também
muita coisa. Mas eu pensei assim: “Vou fazer um resgate da história
oral, porque tem muita gente que participou de muitos fatos relevantes
aqui, até como protagonista daquele fato político, esportivo e
religioso”. Eu digo: “Poxa, eu vou pegar, porque nossa cabeça é um HD,
morreu deletou tudo. É como se entrasse um vírus ali e deletasse tudo”.
Então, o que eu fiz? Eu criei o Projeto Memória Santarena em 1988.
Comprei uma filmadora daquelas grandonas, Panasonic, aquelas fitonas
ainda e eu sem saber direito como fazia o negócio. Quem quer faz. Eu
convidava meus amigos, principalmente o Emir Bemerguy e comecei a
selecionar umas personalidades que tinham condições de resgatarmos muito
da história de Santarém, nos seus aspectos mais variados possíveis;
social, econômico, político e religioso. Comecei com Zeca BBC em 1988.
Rapaz, aquilo me empolgou vendo a vida do Zeca BBC, ele contando suas
peripécias, no aspecto político e no aspecto profissional, um homem que
conhecia e amava Santarém, um homem desprendido de vaidade. Aí,
começamos com Zeca BBC, depois com Dom Thiago, Isoca, Dororó, o próprio
Emir Bemerguy que citei, Dica Frazão, Arara, Agapito, César Sarmento. Só
sei que tem quase 60 pessoas, personagens já registradas. Eu fui
guardando isso, até que chegou o momento que eu disse: “Não adianta eu
ficar com isso aqui, temos que disponibilizar para a sociedade”. Foi
quando começamos, se não me falha a memória em 2011, a transcrever essas
entrevistas e transformá-las em livros. O número 1 foi o Zeca, número 2
foi o Dom Thiago, o número 3 foi Isoca, só sei que já tem 8 livros,
pois todo ano eu fazia 2 ou 1. É aí que entra o que você me perguntou,
sobre o apoio efetivo nesse projeto da Prefeitura. Desde o Lira Maia
quando começou é que a gente faz o seguinte: “Eu vou com eles, eles
adquirem uma quantidade razoável, pois nós editamos mil por cada tiragem
e a Prefeitura fica com 300 a 400 livros, que é para colocar nas
bibliotecas das escolas. Isso ajuda muito, pois aqui temos o prédio, a
energia é cara, temos dois funcionários com carteiras assinadas,
material de consumo, material de limpeza, e tem que comprar estante que
vai aumentando todo tempo. É uma despesa fixa interessante, que só tem
praticamente essa ajuda na época, na hora da edição dos livros e aí fica
pesado.
Jornal O Impacto: Antes de
terminar nossa conversa, há pouco tempo nós tivemos aquele prejuízo a
nível nacional, que foi o incêndio do Museu no Rio de Janeiro. Como é
que você avalia essa situação, pois apareceram muitas críticas e o
resultado disso é que os museus não são bem zelados, não tem
investimento do poder público?
Cristovam Sena: Olha,
minha visão é de que foi desleixo mesmo. Os caras vão deixando para
amanhã a manutenção do prédio e chega ao ponto de pegar fogo e tudo que a
gente lê a respeito de pessoas que merecem credibilidade, é de que
houve um desencontro do Governo Federal e também da administração do
Museu em fazer com que houvesse o entendimento para restaurá-lo. Foi
culpa humana. Eu não acredito que o acaso, um curto-circuito, poderia
muito bem ter sido evitado o prejuízo imensurável sobre a cultura.
Jornal O Impacto: Eu não podia
deixar de encerrar sem perguntar o seguinte: com esse avanço da
tecnologia, a chegada de internet, mesmo assim a frequência continua
normal?
Cristovam Sena:
Continua, porque tem muitas coisas que tem aqui que você não vai
encontrar na internet, então, tem muita gente dos cursos de História e
Antropologia, que nos procuram para informações, principalmente das
universidades e também os alunos do ensino médio. Vem bastante gente
aqui, tudo sem custo. Tem uns que vem aqui só para ler e estudar. Aí eu
fico conversando com eles, que dizem que nas suas casas tem muito
barulho. Tem meninos aqui, eu me sento com eles, bons papos, eles passam
o dia. Tem uns que vêm aqui, acho que no período de provas, que passam o
dia estudando. Isso dá satisfação, porque o negócio interessante disso,
eu digo na brincadeira, mas tem um fundo de verdade, que isso aqui se
transforma em vício. Nós precisamos de vícios para viver bem, porque
colocamos muito a ideia do vício, da droga, do álcool que não deixa de
ser um vício também. Eu digo que isso aqui é um vicio, porque para o
vício nós arrumamos um tempo e dinheiro, se não for vício você
negligencia. Você tem que ir atrás, correr atrás e conseguir. Então,
isso aqui é um vicio, e conversar com jovem não tem coisa melhor na
vida, porque oxigena a mente, você vai conversar de outras coisas que
não é do seu cotidiano, coisas que já passaram e vai falar e pesquisar
com eles; eles querem saber assunto de Fordlândia, querem saber assunto
da Cabanagem, o ciclo da juta, ciclo do ouro e querem saber sobre
jornais. Vamos pesquisar e eu frequentemente estou com eles, é muito
bacana. Quando eu estou na roda de velhos da minha idade, 70 anos, o
assunto é doença, remédios, então, eu prefiro ficar conversando com os
jovens. O ICBS fica na Travessa 15 de Agosto – nº 1248, entre Borges
Leal e Marabá, e eu vou repetir aqui: “Nós temos um site, uma página que
você vai encontrar o jornal número 1 do Impacto, que é
www.icbsena.com.br”.
Por: Jefferson Miranda
Fonte: RG 15/O Impacto