O realismo político
desconfia muito da amizade. Este é um sentimento próprio das relações
pessoais, indivíduo a indivíduo, intrinsecamente subjetivo, destituído
de interesses, fundado na afeição. Por sua própria natureza, então,
acomoda-se mal no mundo mais impessoal e “interesseiro” da política. O
pensamento “realista” prefere sempre lidar com interesses do que com
sentimentos. Interesses são definidos, quantificáveis, suscetíveis de
negociação. Sentimentos são ocultos, arbitrários, volúveis e demandam
uma reciprocidade não quantificável.
A atmosfera do poder, se
não torna a amizade impossível, por certo impõe tensões muito
desagregadoras a ela. No mundo em que o governante desenvolve suas
atividades não há muito espaço para amizades. Amigos exigem muito e
esperam muito, na forma de atenção, consideração e compreensão. Amigos
tendem a atribuir um significado ao conceito de lealdade do chefe para
com eles, que extrapola em muito os limites toleráveis para quem tem a
responsabilidade de governar.
Amigos exigem uma
solidariedade irrestrita e imediata a qualquer momento em que entrem em
dificuldades, que será paga pelo governante em “moeda política”, que com
tanto esforço acumulou. Amigos, pois, tendem a desenvolver expectativas
exageradas e desproporcionais do governante.
Tais expectativas –
compreensão, paciência, consideração, solidariedade irrestrita – são
perfeitamente justas e adequadas no contexto de relações pessoais
privadas. Transpostas para o mundo da política, que na sua lógica
própria não as reconhece, tornam-se politicamente onerosas e até
tirânicas. Por estas razões, amigos no governo estão sempre à “beira da
decepção” com seu amigo poderoso, na iminência do rompimento da amizade.
Há sempre alguns amigos
que são capazes de fazer a distinção entre as duas situações – amizade
na vida privada e na vida pública. São poucos, mas são valiosos. Você os
reconhece porque eles não lhe criam problemas. Antes, resolvem-nos,
mesmo ao custo de prejuízo pessoal, e você só fica sabendo muito depois.
A outra marca deles é a
de não opor obstáculos e não desenvolver hostilidade com os novos amigos
ou colaboradores que você atrai para seu círculo mais próximo. Destes
amigos, o governante deve cercar-se. Eles serão o apoio mais importante
nos piores momentos. Dos outros deve afastar-se.
Os “amigos perigosos”
comportam-se de maneira oposta nos dois casos: costumam criar-lhe
problemas e hostilizam, por princípio, os novos participantes do círculo
mais próximo de você. Já os “inimigos”, o realismo político encara de
maneira diferente. Inimigos e adversários possuem muitos atrativos
políticos. A adesão de um adversário ou inimigo sempre significa um
enfraquecimento do bloco adversário, se não quantitativo, por certo que
qualitativo. Aos olhos do povo, o apoio de um adversário valerá muito
mais do que o mesmo apoio de um aliado.
Inimigos e adversários
também não têm expectativas, ou melhor, as expectativas que tinham em
relação a você eram todas negativas. Ao convidá-lo para integrar sua
equipe, você provoca a reversão da expectativa, premiando-o quando o que
se esperava era que fosse ignorado, prejudicado. O gesto de convidá-lo
realiza uma expectativa que ele não possuía, e pela qual ele ficará
devedor e sinceramente grato.
Além disso, um
adversário ou inimigo que se integra ao governo tem muito a provar. Ele
terá que reverter as dúvidas que vão pairar sobre sua lealdade, e terá
que revelar sua competência duplamente. Por estas razões, ele será mais
dedicado, preocupado em não deixar dúvidas quanto a sua lealdade,
evitará criar-lhe problemas, e, tendo rompido com o outro lado,
dependerá de você e do seu sucesso mais que seus amigos.
Finalmente, o inimigo
cooptado será infinitamente mais paciente e compreensivo que os
“amigos”. Diferentemente destes, ele não pode dar-se ao luxo de ficar “à
beira da decepção, na iminência de afastar-se ofendido”. Afinal, ele já
“mudou de campo” uma vez.
Se repetir a dose, é por
que quem tem problemas é ele, e não os grupos políticos que abandona.
Todas estas considerações ajudam a entender porque os pensadores e os
políticos, ao longo da história, revelam tanto ceticismo em relação à
amizade na política, e tanta atração pela cooptação dos adversários.
Por Francisco Ferraz