
Alguns podem ainda não saber, mas a
cidade de Santarém do século XXI está crescendo sobre uma extensa malha
de sítios arqueológicos pré-históricos, alguns já registrados no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e outros
ainda a serem cadastrados. Neles, é possível encontrar uma terra muito
fértil, de coloração escura e com intensa atividade biológica, rica em
carbono, cálcio, nitrogênio, fósforo, manganês e zinco, também conhecida
como terra preta de índio (TPI) ou terra preta arqueológica (TPA).
Investigar como se dá a relação da população de Santarém quanto a esse
recurso arqueológico foi o objetivo de estudo do concluinte do curso de
arqueologia da Ufopa Edvaldo Pereira, orientado pela Profa. Dra. Lilian
Rebellato, intitulado “Terra Preta em Santarém (PA): Usos, Percepções e
Apropriações”.
“A terra preta, que vem chamando a
atenção dos santarenos há muito tempo por sua fertilidade inigualável,
se constitui num importante marcador arqueológico, formado a partir do
acúmulo contínuo e de longo termo de resíduos orgânicos, fragmentos
cerâmicos, lascas de rochas e carvão, que hoje sabemos serem decorrentes
da intensificação das atividades de subsistência e do crescimento
populacional humano na região”, destaca o pesquisador.
O problema analisado na pesquisa
centrou-se na maneira como os cidadãos e o poder público municipal
encaram esse patrimônio arqueológico e como se relacionam com ele,
estabelecendo em seu uso e apropriação de vínculos de reconhecimento que
demonstram ou não a compreensão deste fenômeno enquanto patrimônio
cultural da população de Santarém. “Se, no passado, o patrimônio
arqueológico da cidade tem uma triste história de depredação de sítios,
saques e tráfico de peças por colecionadores nativos e estrangeiros,
ainda hoje esse mesmo patrimônio encontrado na terra preta sofre com a
falta de instrumentos de gestão e políticas públicas de planejamento
urbano”, revela o autor do estudo.
Por meio de pesquisa documental, o
estudo apresenta a história das primeiras menções à terra preta ainda no
século XVIII, passando pelos primeiros estudos científicos e
descobertas, até chegar aos dias atuais, com a captura e o registro de
depoimentos individuais de cidadãos santarenos que no cotidiano
manipulam esse solo. “Registramos as interpretações particulares para
esse vestígio arqueológico, em um trabalho específico com trabalhadores
da construção civil, que escavam diariamente em TPA; com trabalhadores e
proprietários de floricultores, que transformam esse recurso em adubo;
com agricultores familiares, que cultivam em TP e com mineradores, que
extraem e comercializam a TPA”, conta.
Constatações
Segundo a pesquisa, apesar de ser
internacionalmente reconhecida como fundamental nos estudos sobre a
origem e a história da ocupação humana na Amazônia, a cidade de Santarém
demonstra pouco reconhecimento e identificação com sua pré-história, o
que fica evidenciado no descaso e na ausência de ferramentas de gestão
do patrimônio arqueológico, que é invisível nas legislações de âmbito
municipal. “A lei que cria o sistema municipal de cultura nem sequer
reconhece o conselho do patrimônio cultural como um componente desse
sistema. Para a legislação santarena o patrimônio arqueológico não
existe, e isso é assustador”, avalia.
Edvaldo destaca a necessidade de
empreender esforços para o aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão,
sejam eles urbanísticos, jurídicos e/ou tributários, dentre outros, de
forma a concebê-los como parte de uma proposta democrática, cidadã e
holística, capaz de reconhecer o patrimônio histórico e arqueológico de
Santarém dentro de suas reais dimensões.
Como consequência da ausência de
políticas públicas e no contexto de conflitos entre o crescimento e
desenvolvimento urbano e a preservação dos recursos arqueológicos,
segundo o pesquisador, a cidade de Santarém tem perdido nas duas pontas.
“É possível perceber as perdas tanto no que diz respeito aos problemas
oriundos do processo de expansão desordenada, quanto em relação aos
prejuízos inestimáveis ao patrimônio arqueológico, seja nas áreas
urbanas ou rurais. O mais grave é que no caso da terra preta é sempre
importante ressaltar que se trata de um bem único, finito e não
renovável”, argumenta.
“Também não podemos fechar os olhos para
a disputa ideológica e os interesses econômicos que envolvem a questão
do patrimônio cultural. A ideia de desenvolvimento econômico hegemônica
na sociedade capitalista sempre opôs preservação à exploração e os
recursos arqueológicos são sempre vistos apenas como entraves a serem
superados na consecução dos empreendimentos e na obtenção de lucros”,
destaca.
O pesquisador também defende a
participação de toda a sociedade como um caminho necessário para a
proteção da terra preta, enquanto componente imprescindível da
biodiversidade regional. “O que está em jogo não é apenas a compreensão
do passado, mas a construção de um futuro melhor, ecologicamente
equilibrado e sustentável”, conclui.
Fonte: RG 15/O Impacto e Talita Baena/Ufopa