Professor Samuel Gomides, do Campus da Ufopa de Oriximiná, participou da pesquisa que identificou espécie no norte da Bahia
Uma nova espécie de
cobra-de-duas-cabeças foi descoberta por pesquisadores brasileiros em
área de caatinga, no Norte da Bahia. Apesar do nome popular, esse animal
não é uma serpente, nem possui duas cabeças. Os herpetólogos –
especialistas que estudam anfíbios e répteis – chamam as
cobras-de-duas-cabeças de anfisbena, nome de origem grega que quer dizer
“que anda para os dois lados”.
Denominada de Amphisbaena kiriri, a nova
espécie foi descrita, a partir de um trabalho conjunto, por três
docentes de universidades públicas: Prof. Dr. Leonardo Ribeiro, da
Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que coordenou o
estudo; Prof. Dr. Samuel Gomides, da Universidade Federal do Oeste do
Pará (Ufopa), Campus de Oriximiná; e o doutorando Prof. Me. Henrique
Costa, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua descrição
eleva para 23 o número de espécies de anfisbenas para a caatinga.
“As anfisbenas são répteis que, com os
lagartos e as serpentes, formam um grupo denominado Squamata e
compartilham um ancestral em comum. Apesar de parentes próximos, as
anfisbenas não são serpentes. Elas vivem enterradas no solo, por isso
tem os olhos bem pequenos, quase vestigiais, e não enxergam muito bem”,
explica o coordenador do estudo, Leonardo Ribeiro, da Univasf. “Pelo
fato da cabeça ser bem parecida com a ponta da cauda, muitas pessoas
ficam confusas e acham que esse animal possui duas cabeças, o que não é
verdade”, esclarece. “As anfisbenas não são peçonhentas ou venenosas e
não oferecem nenhum tipo de perigo”.
A descoberta foi publicada, em maio
deste ano, no periódico internacional Journal of Herpetology, publicação
com fator de impacto 0.911, editado pela Society for the Study of
Amphibians and Reptiles – SSAR (Sociedade para o Estudo de Anfíbios e
Répteis), considerada a maior sociedade herpetológica internacional, com
sede nos Estados Unidos. No artigo “A New Species of Amphisbaena from
Northeastern Brazil (Squamata: Amphisbaenidae)”, os pesquisadores
descrevem a nova espécie de Amphisbaena da Caatinga.
DESCRIÇÃO: A espécie foi descoberta
quando Leonardo Ribeiro estudava espécimes depositados na coleção
herpetológica da Univasf, oriundos de um estudo de monitoramento
ambiental para a construção de usinas eólicas no interior da Bahia, na
região do município de Campo Formoso. Ele percebeu que esses animais não
se encaixavam em nenhuma descrição de espécie conhecida e, por isso, se
tratava de uma espécie nova para a ciência. “O conhecimento sobre a
riqueza de espécies de cobras-de-duas-cabeças tem aumentado intensamente
no Brasil desde a década de 1990, especialmente na Caatinga e no
Cerrado, em maior parte devido a coletas em áreas previamente não
amostradas para fins de estudos de impacto ambiental”, afirma.
“Essa nova espécie tem uma história de
descoberta feita a muitas mãos”, revela Samuel Gomides, da Ufopa. “O Dr.
Leonardo Ribeiro, da Univasf, recebeu esse animal a partir de trabalhos
de estudos ambientais feitos na construção de uma usina eólica na
região da Bahia. Ele percebeu que esse animal não se encaixa em nenhuma
espécie conhecida para a região, e me mostrou esse exemplar. Nós
estudamos os espécimes e percebemos que se tratava de uma espécie
totalmente desconhecida pela ciência, e que nunca havia sido reportada
ou estudada. Dessa forma, começamos o processo formal de descrição da
espécie”, lembra.
“Convidamos um terceiro colega, o
doutorando Henrique Costa, da UFMG, que atualmente trabalha com esse
grupo de répteis no seu doutorado e tinha informações muito valiosas que
poderiam ser incluídas no artigo elaborado. Analisamos o material,
comparamos com as outras espécies e, a partir dos dados obtidos,
escrevemos conjuntamente o artigo que foi publicado”.
O trabalho foi feito em três estados
diferentes (Pernambuco, Pará e Minas Gerais), com análises em quatro
universidades federais. “Além da instituição onde cada pesquisador está
situado, tivemos a colaboração da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) que cedeu o espaço para algumas análises feitas em microscópio”,
explica Gomides. “As facilidades do mundo moderno, como a internet,
possibilitam a cooperação multi-institucional para a produção da
ciência”.
Para os pesquisadores, a descoberta
ressalta a importância dos estudos de impacto e de monitoramento
ambiental em empreendimentos que interferem no ambiente natural. “Em um
momento onde se discute um relaxamento das leis ambientais no país (caso
da PL 3729/04), este achado indica a necessidade de mais investimentos
para inventariar nossa biodiversidade e a necessidade de entender como
os empreendimentos podem afetar as espécies”, afirma Ribeiro. A espécie
recém-descoberta, por exemplo, só é conhecida no município de Campo
Formoso, em áreas que foram impactadas pelas obras da construção da
usina eólica. Para os cientistas, serão necessários estudos futuros para
avaliar se a espécie é abundante ou rara na região.
Em abril deste ano, a área onde a nova
espécie foi descoberta se tornou oficialmente parte da Área de Proteção
Ambiental Boqueirão da Onça – um tipo de unidade de conservação que
permite ocupação humana e outras atividades. O local fica a menos de 1
km do também recém-criado Parque Nacional do Boqueirão da Onça. Apenas
com novos trabalhos na região será possível afirmar se o réptil também
habita o parque.
HOMENAGEM: O nome científico da nova
espécie é Amphisbaena kiriri, em homenagem aos índios kiriris, também
conhecidos como kariris ou cariris, que antigamente viviam em grandes
comunidades nas caatingas do interior do estado baiano, e atualmente
estão restritos a poucos indivíduos. Eles falavam quatro dialetos que
atualmente estão extintos. “O nome dado à espécie é uma forma de
homenagear os habitantes originais da região, e chamar a atenção para a
situação dos indígenas brasileiros, que sofrem com a destruição dos
ambientes naturais e a expulsão das suas terras originais, assim como
muitos representantes da fauna”, explica o professor Ribeiro.
A palavra “kiriri” significa silencioso
ou taciturno na língua tupi, original dos nativos do litoral brasileiro.
Algo que também remete aos hábitos desse animal, que vive escondido sob
os solos e não emite nenhuma vocalização, o que dificulta sua
observação no seu hábitat natural. A área onde a espécie foi descoberta é
conhecida também por abrigar algumas comunidades quilombolas, locais
onde descendentes de escravos das fazendas de cana do estado se
abrigavam para fugir da vida de exploração e abusos sofridos pelos
colonizadores.
Durante muitos anos, a caatinga foi
considerada um bioma com pouca biodiversidade frente a outros biomas
brasileiros, o que pesquisas recentes têm contestado. “A verdade é que a
caatinga apresenta uma alta riqueza de espécies, e com várias espécies
endêmicas, ou seja, que só são encontradas lá, o que é o caso da
anfisbena-kiriri”, afirma Ribeiro. Com a nova descoberta, chega a 23 o
número de espécies desse grupo de répteis na caatinga. No Brasil, são
conhecidas 795 espécies de répteis, sendo que, destas, 72 são de
anfisbenas. O país ocupa atualmente a 3º colocação no número de espécies
de répteis, ficando atrás somente da Austrália (1.057 espécies) e do
México (942 espécies).
ESTUDOS TAXONÔMICOS: A DIFÍCIL TAREFA DE IDENTIFICAR UMA NOVA ESPÉCIE:
“Esse é um estudo taxonômico. Trata-se, basicamente, de analisar
espécimes e classificá-los dentro da árvore da vida. A taxonomia é
essencial para descrever os organismos, de agrupar indivíduos em
espécies, organizar espécies em grupos maiores e dar nomes aos grupos,
produzindo assim uma classificação que reflita a evolução das espécies”,
explica o professor Samuel Gomides, do Campus de Oriximiná da Ufopa.
Segundo Gomides, a taxonomia é a ciência
que busca definir e nomear grupos de organismos biológicos com base em
características compartilhadas. Organismos são agrupados em taxa
(singular: táxon) e esses grupos recebem uma classificação taxonômica;
grupos de uma determinada classificação podem ser agregados para formar
um supergrupo de maior hierarquia, criando assim uma hierarquia
taxonômica. “A taxonomia é essencial para os estudos de sistemática, que
é o sistema de classificação biológica moderna, baseado nas relações
evolutivas entre organismos vivos e extintos”.
Para o professor da Ufopa, a
identificação de uma espécie nova não é tão simples quanto parece.
“Primeiro examinamos um espécime. A partir daí comparamos suas
características com as outras espécies conhecidas. Não é uma tarefa
fácil. Só no Brasil, temos mais de 70 espécies de anfisbenas. São quase
800 espécies de répteis e mais de 1000 de anfíbios. Somos o terceiro
país no ranking de diversidade de répteis, e lideramos o ranking no
grupo de anfíbios”, revela.
O pesquisador explica que é necessário
analisar várias características de um espécime para identificá-lo
corretamente. “Avaliamos o tamanho do animal e de suas estruturas
anatômicas, número e formato de suas escamas, coloração e várias outras
características morfológicas. Inclusive, é comum o uso de análises
genéticas”. Geralmente não basta apenas um indivíduo para o trabalho,
sendo necessárias mais amostras da população estudada. “Nesse trabalho,
conseguimos oito animais da mesma região”.
Após um extenso processo de comparação
dos dados desses animais com exemplares de outras espécies, os
pesquisadores conseguiram descrevê-los ressaltando todas as diferenças
entre a espécie nova para as outras espécies já conhecidas, demonstrando
assim que realmente a espécie nova é diferente de tudo que se conhecia
anteriormente.
“Após todo esse processo, o artigo foi
submetido para a publicação no periódico americano Journal of
Herpetology, onde, após passar pela avaliação do editor-chefe, foi
avaliado por mais dois especialistas da área, que ratificaram os nossos
achados como inéditos”, explica.
LEEARN – Contratado
pela Ufopa por meio de concurso público em 2017, o professor Gomides
integra o grupo de pesquisa “Biodiversidade, Ecologia e Conservação de
Organismos Neotropicais” (Becon) junto com outros cinco pesquisadores de
diferentes áreas do conhecimento, como Ecologia, Conservação, Botânica e
Zoologia, envolvidos em pesquisas sobre organismos neotropicais,
sobretudo os amazônicos.
O professor coordena o Laboratório de
Ecologia e Evolução de Anfíbios e Répteis Neotropicais (LEEARN), que é
focado no estudo da herpetofauna, grupo formado pelos anfíbios e
répteis. “O LEEARN tem estudado os anfíbios e répteis da Calha Norte, e
no curto espaço de tempo que entrou em atividade já descobriu diversas
espécies que não eram conhecidas para a região, além de encontrar
espécies que provavelmente são novas para a ciência, como o caso dessa
anfisbena”, afirma o pesquisador.
Segundo Gomides, vários trabalhos vêm
sendo desenvolvidos nessa linha pelos seus orientados, também em
parcerias com pesquisadores de outras instituições brasileiras (UFMG,
UNIVASF, UFJF e USP) e do exterior (Universidade de Oxford, Inglaterra).
“Nesse sentido, nosso laboratório foca no entendimento da composição da
biodiversidade de anfíbios e répteis do Neotrópico, e os processos
envolvidos na evolução desse grupo megadiverso”. Com informações da
Ufopa.