Comunidades tradicionais do Pará conseguiram suspender licenciamento do Porto do Maicá
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Mais de quatrocentas famílias quilombolas eram invisíveis para os produtores de soja que pretendem construir um porto nas margens do Rio Amazonas,
no trecho em que suas águas banham o estado do Pará. Os estudos
ambientais do Porto do Maicá, em Santarém, afirmavam “não existir nenhum
território quilombola na área diretamente afetada do empreendimento”.
Mas, a menos de cinco quilômetros do local previsto para o porto,
sete comunidades quilombolas dependem do rio para sobreviver.
Até então ignoradas, essas comunidades
conseguiram obrigar o empreendimento a enxerga-las. O licenciamento da
obra foi suspenso até que quilombolas e outras populações tradicionais
da região do lago do Maicá sejam ouvidos pelo governo e pela empresa
construtora do porto, a Embraps (Empresa Brasileira de Portos de
Santarém). Eles foram obrigados a fazer o processo de consulta às
comunidades da região, conforme estabelece a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho.
Os quilombolas de Maicá formam um grupo
pequeno, mas conseguiram um feito grande. Apesar de ter sido assinada
pelo Brasil há quatorze anos, a aplicação da convenção ainda é uma
novidade, e pode mudar a forma como todas as comunidades são tratadas
por empreendedores no país inteiro. O documento determina que
comunidades tradicionais sejam consultadas “cada vez que sejam previstas
medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los
diretamente”.
João Lira, um dos líderes da comunidade
Murumuru, explica o que a letra fria da convenção significa para os
quilombolas: “Eles [empresários] acham que ainda está no tempo de
empurrar tudo goela a baixo, que a gente tem que aceitar calado. Mas nós
sabemos que eles precisam nos ouvir, nos respeitar, e nos consultar.”
“Informações apresentadas pela Embraps demonstram o discurso carregado de uma visão colonialista e ultrapassada”
Depois de serem ignoradas pelos estudos
de impacto do empreendimento, as comunidades reivindicaram o direito de
serem consultadas ao Ministério Público Federal. Pedindo a suspensão do
licenciamento enquanto não houvesse a consulta, duas procuradoras
entraram com uma Ação Civil Pública contra o estado do Pará, a empresa, a
Fundação Palmares e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária).
As procuradoras questionam se a empresa
ignorou os quilombolas por “mera incompetência” ou vontade de deixá-los
invisíveis. Na ação, consta que “informações apresentadas pela Embraps
demonstram o completo desconhecimento da temática […] e discurso
carregado de uma visão colonialista e ultrapassada.” Um juiz federal
aceitou o pedido em 12 de abril de 2016, e o processo da obra está
parado desde então.
Por que quilombolas?
Os quilombolas do Maicá só conseguiram
ser consultados graças a um processo que começou há mais de uma década,
quando os descendentes de escravos dessa região começaram a reivindicar
as suas origens e, consequentemente, os seus direitos.
Desde a Constituição de 1988, os
“remanescentes das comunidades dos quilombos” têm direito à propriedade
definitiva das suas terras. Mas foi só no começo da década passada que
as comunidades do Maicá começaram a ter conhecimento dos seus direitos.
João Lira diz que, antes disso, eles possuíam vergonha do seu passado, e
se reconheciam somente como ribeirinhos. “No passado, a sociedade
tentava colocar na nossa cabeça que nós tínhamos que esquecer o
sofrimento do nosso povo. Com o surgimento do movimento quilombola,
resgatar o passado se tornou um [motivo de] orgulho,” diz João Lira.
As comunidades começaram a ser
reconhecidas pelo Estado graças à sua organização. Desde o final da
década de 1990, eles formaram associações de moradores e começaram um
diálogo maior com comunidades de outras regiões. Entre 2003 e 2007, sete
delas foram certificadas pela Fundação Palmares, órgão do Governo
Federal. Dentre elas, duas já foram delimitadas pelo Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e aguardam o decreto que
desapropria os terrenos de fazendeiros e outros posseiros que se
encontram nas suas terras.
O movimento de resgatar a identidade
quilombola não é restrito ao local, mas representa uma dinâmica de
diversas comunidades no país, intensificado desde 2003, quando foi
regulamentado o processo de demarcação das terras quilombolas pelo
governo federal. Um movimento que costuma provocar uma pergunta
polêmica: por que, afinal, um grupo se considera quilombola?
O simples fato da pergunta ser feita já
incomoda Mário Pantoja de Souza, líder da associação da comunidade
Murumuru. Ele explica: “se você é negro, você é olhado com preconceito.
Se você é moreno ou claro, então você não é quilombola, porque você não é
negro”. As casas onde eles moram, muitas vez de alvenaria e com luz
elétrica, e a música mais ouvida no local, o arrocha, tampouco se
encaixam em um estereótipo ligado à escravidão do passado. “Ao longo do
tempo, nós aprendemos a viver a cultura de terceiros,” diz Mário. Ele
conta que, hoje, a sua comunidade educa os mais jovens,para que eles
tenham orgulho de serem quilombolas.
“No passado, a sociedade tentava colocar
na nossa cabeça que nós tínhamos que esquecer o sofrimento do nosso
povo. Com o surgimento do movimento quilombola, resgatar o passado se
tornou um [motivo de] orgulho”
Em sua maioria, as comunidades foram
formadas por escravos que fugiram de fazendas de cacau e se
estabeleceram nas margens do rio Amazonas. Hoje, os quilombolas que
moram naqueles mesmos lugares vivem principalmente da subsistência,
complementada por programas sociais e a venda do peixe, açaí e farinha.
Esse modo de vida, que é distinto dos habitantes das cidades, é o que
buscam proteger se opondo ao projeto do porto.
O desenvolvimento dos outros
O modo de vida dessas comunidades está
em risco por um desejo alheio às necessidades delas: a busca por um
caminho mais curto para a soja brasileira sair do país. Com a construção
do porto, seria possível diminuir em cerca de 800 quilômetros o trajeto
feito por terra pelos grãos que saem do Mato Grosso e, atualmente,
necessitam passar pelo Porto de Santos. A alternativa de passar pelo
Porto do Maicá, em Santarém, encurtaria em sete dias o tempo que os
barcos levam para chegar à Europa. “Isso significa muito para o produtor
e para o país, para a redução do custo Brasil. Você acaba investindo
esse dinheiro em outra coisa, e vai gerar renda, emprego”, argumenta
Pedro Riva, produtor de soja e dono de 75% da empresa que pretende
construir o porto. Riva estima que serão gerados 700 empregos diretos na
construção, e outros 70 posteriormente.
O porto é parte de uma série de projetos
com o mesmo objetivo: escoar a produção agrícola brasileira para o
mercado internacional. Duas empresas estrangeiras já mostraram interesse
em construir outros terminais em Santarém, o que complementaria outras
rotas abertas na região. Uma delas é a construção de uma ferrovia
paralela à BR-163, que permitiria levar a soja por trilhos do Mato
Grosso até a cidade de Itaituba, noroeste do Pará. A outra seria uma
hidrovia pelo rio Tapajós, que permitira transportar os grãos
mato-grossenses pelo rio até Santarém, de onde podem ir direto para
outros continentes.
As promessas de renda e emprego para a
população local, que acompanham todas essas obras, são vistas de forma
cética pelos quilombolas da região. “O que a gente reivindica é que o
empreendedor venha não somente mostrar as coisas boas. Nós queremos
saber as coisas ruins que vão acontecer com a construção desse e de
outros portos” diz Mário.
“Coisas ruins”
Boa parte das ‘coisas ruins’ ficaram de
fora do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Embraps, onde os impactos
já deveriam ter sido detalhados. Advogada da ONG Terra de Direitos, que
presta assessoria jurídica às comunidades, Layza Queiroz afirma que os
quilombolas navegam hoje um “mar de incertezas” sobre o projeto, mas
algumas das consequências da construção já são previsíveis.
“O que a gente reivindica é que o
empreendedor venha não somente mostrar as coisas boas. Nós queremos
saber as coisas ruins que vão acontecer com a construção desse e de
outros portos”
Um deles seria o impacto sobre a pesca. O
estudo não afirma que medidas serão tomadas para a preservação dos
peixes, responsáveis pela sustentação diária das comunidades. A empresa
se resume a dizer que serão tomadas medidas de proteção às espécies em
risco de extinção no rio Amazonas, ou seja, somente duas das mais de 150
que vivem ali.
Os quilombolas ainda temem que a área
aterrada pelo porto possa afetar a reprodução dos peixes, já que o lago
funciona como um berçário. “A preocupação não é agora, é daqui a dez
anos: como é que vamos alimentar nossos filhos, nossos netos?”, pergunta
João Lira. O advogado da empresa, Andrew Raseira, afirma que as obras
“não devem assorear” o terreno e impactar a reprodução dos peixes.
O estudo da empresa também não fala
sobre como a obra afetará a navegação dos quilombolas. Zé Maria, morador
da comunidade de São José do Itaqui, só possui acesso à sua casa pelo
rio. Com a construção, ele teme não conseguir chegar mais à cidade pelo
seu caminho diário. “Assim como a gente vai levar alimentos, a gente
também vai buscar,” diz o líder da comunidade, preocupado. Ele receia
que o porto o faça desviar pelo braço mais forte do rio Amazonas, um
caminho mais longo e perigoso para pequenas embarcações. O advogado da
empresa afirma que, como as esteiras serão suspensas, e as embarcações
poderão passar por baixo dela, a obra não deve afetar a navegação dos
quilombolas.
Outra preocupação é com a estrada que
será aberta pela prefeitura para levar uma grande quantidade de
caminhões ao local. Quilombolas entrevistados pela reportagem temem que o
tráfico de caminhões tenha consequências para as comunidades, como
poluição ambiental e sonora. Somente o pátio de triagem tem capacidade
de receber 938 caminhões por dia.

Pedro Martins, advogado da Terra de Direitos, afirma que a falta de titulação agrava os outros problemas dos quilombolas
Os estudos da empresa afirmam que a
estrada não provocará “impactos significativos nas populações residentes
do entorno da área do empreendimento.” Eles também argumentam que
“todos os equipamentos com alta capacidade de emissão de ruídos serão
alvo de isolamento acústico”.
“Foram empregos só no início das obras. Depois, a gente só vai ficar com o desemprego e com as mazelas que o projeto vai trazer”
A promessa é vista com ceticismo. João
Lira acredita que o projeto não irá trazer “nenhum benefício” para as
comunidades da região. Ele faz um paralelo com o porto da empresa
multinacional Cargil, construído em 2003. “Foram empregos só no início
das obras. Depois, eles trazem a mão-de-obra especializada, gente de
outros estados, de outras regiões ou até de outros países. Aí a gente só
vai ficar com o desemprego e com as mazelas que o projeto vai trazer.”
A construção do porto também deve
agravar outro problema no local: a falta de titulação das terras das
comunidades. Com a construção, a expectativa é de que o preço da terra
suba na região. Isso tornaria mais difícil a retirada de fazendas que
estão dentro de áreas quilombolas. De acordo com o processo de
titulação, essas fazendas ainda devem ser indenizadas pelo poder público
a valores de mercado, explica o advogado Pedro Martins, da Terra de
Direitos. Depois que o porto for construído, essa indenização deve ficar
ainda mais cara, e portanto, improvável de ser quitada pelo governo
federal.

Quilombolas fazem paralelo entre o Porto do Maicá e o terminal construído pela Cargill no começo da década
Como será a consulta?
Todos esses problemas jamais foram
apresentados às comunidades, e a aplicação da Convenção 169 surge
justamente como uma garantia de que a população local tenha conhecimento
detalhado dos impactos, possam opinar sobre a obra, contribuindo com
seu conhecimento do local,além de reivindicar compensações para quem
for afetado por elas , propor mudanças fundamentais no projeto e até
mostrar uma posição contrária à construção.
Mas, dependendo da forma como ela for
feita, a consulta pode se tonar inócua. A decisão judicial não
estabelece detalhes sobre o processo, resume-se a afirmar que o
licenciamento deve ser suspenso “até que seja demonstrada a efetiva
realização do procedimento de consulta livre, prévia e informada às
populações quilombolas e tradicionais situadas na sua área de influência
direta”.
Para a procuradora Fabiana Schneider,
responsável pelo caso, são as próprias comunidades que devem dizer como a
consulta deve ser feita. Segundo ela, só assim a forma de se organizar
de cada uma delas será respeitada. Para isso, deve ser elaborado um
protocolo de consulta: documento com detalhes sobre como, onde e de que
forma eles devem ser ouvidos. “Cada comunidade vai ter uma forma de
decisão. Uma decisão coletiva, ou uma forma de decisão centrada na sua
liderança, seja um cacique, seja uma liderança quilombola, então essa é a
forma que não é dita por nós. Não somos nós que vamos decidir por
eles,” diz a procuradora. Atualmente, a Federação das Organizações
Quilombolas de Santarém já elabora um protocolo de consulta.
Já a Embraps se adianta à elaboração das
regras pelas comunidades. Pedro Riva afirma já ter contratado uma
empresa para a consulta. Sem detalhar como ela será feita, ele conta que
os trabalhos “já foram iniciados”, e somente aguarda uma autorização da
Fundação Palmares. “Está tudo prontinho. Aí espero que o Ministério
Público nos libere para marcar essa audiência pública e fazer
acontecer,” diz o produtor de soja.
Presidente da Federação das Organizações
Quilombolas de Santarém, Dileudo Guimarães não acredita que a consulta
proposta por Riva possa funcionar. Assim como a maioria dos quilombolas
ouvidos pela reportagem, ele vê o processo como uma oportunidade de
descobrir e mostrar porque eles serão prejudicados pela obra.
O maior desafio da consulta é
equilibrar, na mesma balança, forças díspares. De um lado, um dos
maiores setores econômicos do país com o argumento do desenvolvimento.
De outro, comunidades que vivem de modo sustentável e que, devido aos
impactos do empreendimento, seriam obrigadas a deixar o local onde vivem
para engrossar as periferias das cidades.
A decisão passa por um elemento delicado
que as populações das cidades costumam ter dificuldade em entender: a
sobrevivência de um modo de vida. Mesmo assim, Mário explica e espera
ser ouvido: “se a gente perder isso aqui, é praticamente perder a nossa
vida”.
Por: Piero Locatelli, de Santarém (PA) *Colaborou Mikaell Carvalho
Esta publicação foi realizada
com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo com fundos do Ministério Federal
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Fonte: RG15/O Impacto