Não
se passa um dia sem que a imprensa não registre a verborragia de Donald
Trump contra a Coreia do Norte e de Kim Jong-un contra os EUA.
Enquanto
fica na retórica, ou nos duvidosos arrotos nucleares do líder
norte-coreano, que mais parece o patético Dr. Evil daquela trilogia
estadunidense Austin Powers, o bate-boca se atura.
O
problema é se os lados excederem a dose de álcool, pois embora eu ainda
duvide de uma capacidade nuclear factual da Coreia do Norte, está claro
que a proximidade de Seul, Tóquio e mesmo Guam, do lançador de
Pyongyang, pode desencadear uma reação de Washington muito além da
proporcionalidade devida, desestabilizando perigosamente uma região
geopoliticamente bem mais grave do que o Médio Oriente.
A
obtusidade de Trump não compreende que a retórica adotada reforça o
antiamericanismo na Coreia do Norte e turbina a liderança divina da
dinastia Kim, que maneja o país com mãos de ferro desde 1948 e que
acabou sendo consolidada pelos EUA e pela então União Soviética, quando
foi assinado, em 27 de julho de 1953, o Armistício de Panmunjon, que
suspendeu a Guerra da Coreia, uma das mais sangrentas da história
contemporânea.
E assenta-se exatamente nessa passagem o ódio
que é matéria obrigatória nas escolas norte-coreanas, que transforma o
antiamericanismo em uma paranoia nacional: na Coreia do Norte há o “Mês
da Luta contra o Imperialismo Norte-Americano”, celebrado durante todos
os anos, em junho.
A tresloucada fala de Trump na
ONU, prometendo “destruir totalmente" a Coreia do Norte, “caso não tenha
outra escolha”, já foi pronunciada antes por um dos maiores generais
dos EUA, Douglas MacArthur, a quem foi entregue o comando supremo das
operações que deveriam fazer a Coreia do Norte, que havia tomado Seul,
ao Sul, recuar, ao Norte, acima do paralelo 38.
MacArthur
defendeu no Congresso estadunidense a solução final que seria cuspir
fogo em tudo o que se mexesse e não deixar pedra sobre pedra no
território norte-coreano, sepultando assim, de vez, qualquer pretensão
de recuperação “forever and ever”. E assim foi feito.
Uma das poucas literaturas confiáveis sobre a Guerra da Coreia
vem do historiador da Universidade de Chicago, Bruce Cumings, em seu
livro “The Korean War: A History” – não conheço tradução no Brasil – que
narra a aniquilação da Coreia do Norte pela força bruta dos exércitos
estadunidenses.
Narra Cumings, com base em
documentos do próprio exército, que a Coreia do Norte, por exemplo, foi
castigada por 635 mil toneladas de bombas e 32.557 toneladas de napalm, e
isso, observa o autor, foi mais do que o usado em toda a Guerra do
Pacífico contra os japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial.
Prossegue
Cumings, que na campanha de três anos para fazer a Coreia do Norte
voltar para arriba do paralelo 38, os ataques indiscriminados do
exército dos EUA, cuja tática era exatamente semear o terror, dizimaram
20% da população do país e não deixaram absolutamente nenhuma cidade em
pé.
Cumings copia trechos de depoimentos de
autoridades dos EUA ao Congresso sobre a Guerra da Coreia, como o do
então secretário de Estado Dean Rusk, sobre a finalização da campanha:
“bombardeamos cada tijolo que ainda estivesse de pé, qualquer coisa que
se movesse. Os pilotos americanos bombardearam a Coreia do Norte inteira
para valer”.
Mesmo depois da Coreia do Norte
estar de joelhos ao exército estadunidense e a campanha finalizada,
ainda sob a égide da doutrina “forever and ever” de MacArthur, o
exército norte-americano não se rogou e continuou a arrasar a terra,
bombardeando fazendas, barragens, fábricas e hospitais.
As
denúncias de crimes de guerra foram tantas nos EUA que um juiz da
Suprema Corte, William Douglas, quis ir ver in loco se eram verdadeiras
as notícias de terra arrasada e voltou com um dos depoimentos mais
contundentes sobre o ocorrido:
“Eu já tinha visto
as cidades europeias destruídas pela guerra, mas eu nunca tinha visto
uma devastação parecida com a da Coreia”.
Para os norte-americanos, ou para nosotros
que só ouvimos falar da Coreia do Norte depois que um doidivanas
apocalíptico começou a fazer testes balísticos com misseis que ele alega
serem capazes de conduzir ogivas nucleares nas pontas, pode soar
incompreensível esta idiossincrasia do ódio.
Para
os norte-coreanos, não obstante, que são lembrados todos os dias das
atrocidades sofridas, mesmo que a retórica sirva para manter uma
ditadura sanguinária, não é fácil esquecer, antes porque, como não faz
muito tempo – o ápice do conflito se deu entre 1950 e 1953 – ainda tem
muita gente por lá que ainda trás na família algum rescaldo.
Que fique claro não se prestar esta postagem
a justificar o regime norte-coreano e as suas manipulações bélicas,
pois toda ditadura e tão odiosa quanto a maior das atrocidades de
guerra. Tão somente deve servir para mostrar que para plantar e regar o
ódio é preciso ter terra fértil e quem preparou o solo não foi a
ditadura dos Kim: ela apenas, ardilosamente, faz a semeadura e se
alimenta da colheita.
O pior nesta crônica nuclear
é que, de novo, os EUA, com um cochilo da democracia chamado Donald
Trump, tão insensato quanto o seu desafeto ao Norte, potencializa o
solo, ao invés de arrefecê-lo.