quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Kim Jong-Trump e Donald-un: Coreia do Norte e EUA merecem algo menos pior que isto



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Não se passa um dia sem que a imprensa não registre a verborragia de Donald Trump contra a Coreia do Norte e de Kim Jong-un contra os EUA.
Enquanto fica na retórica, ou nos duvidosos arrotos nucleares do líder norte-coreano, que mais parece o patético Dr. Evil daquela trilogia estadunidense Austin Powers, o bate-boca se atura.
O problema é se os lados excederem a dose de álcool, pois embora eu ainda duvide de uma capacidade nuclear factual da Coreia do Norte, está claro que a proximidade de Seul, Tóquio e mesmo Guam, do lançador de Pyongyang, pode desencadear uma reação de Washington muito além da proporcionalidade devida, desestabilizando perigosamente uma região geopoliticamente bem mais grave do que o Médio Oriente.
A obtusidade de Trump não compreende que a retórica adotada reforça o antiamericanismo na Coreia do Norte e turbina a liderança divina da dinastia Kim, que maneja o país com mãos de ferro desde 1948 e que acabou sendo consolidada pelos EUA e pela então União Soviética, quando foi assinado, em 27 de julho de 1953, o Armistício de Panmunjon, que suspendeu a Guerra da Coreia, uma das mais sangrentas da história contemporânea.
E assenta-se exatamente nessa passagem o ódio que é matéria obrigatória nas escolas norte-coreanas, que transforma o antiamericanismo em uma paranoia nacional: na Coreia do Norte há o “Mês da Luta contra o Imperialismo Norte-Americano”, celebrado durante todos os anos, em junho.
A tresloucada fala de Trump na ONU, prometendo “destruir totalmente" a Coreia do Norte, “caso não tenha outra escolha”, já foi pronunciada antes por um dos maiores generais dos EUA, Douglas MacArthur, a quem foi entregue o comando supremo das operações que deveriam fazer a Coreia do Norte, que havia tomado Seul, ao Sul, recuar, ao Norte, acima do paralelo 38.
MacArthur defendeu no Congresso estadunidense a solução final que seria cuspir fogo em tudo o que se mexesse e não deixar pedra sobre pedra no território norte-coreano, sepultando assim, de vez, qualquer pretensão de recuperação “forever and ever”. E assim foi feito.
Uma das poucas literaturas confiáveis sobre a Guerra da Coreia vem do historiador da Universidade de Chicago, Bruce Cumings, em seu livro “The Korean War: A History” – não conheço tradução no Brasil – que narra a aniquilação da Coreia do Norte pela força bruta dos exércitos estadunidenses.
Narra Cumings, com base em documentos do próprio exército, que a Coreia do Norte, por exemplo, foi castigada por 635 mil toneladas de bombas e 32.557 toneladas de napalm, e isso, observa o autor, foi mais do que o usado em toda a Guerra do Pacífico contra os japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial.
Prossegue Cumings, que na campanha de três anos para fazer a Coreia do Norte voltar para arriba do paralelo 38, os ataques indiscriminados do exército dos EUA, cuja tática era exatamente semear o terror, dizimaram 20% da população do país e não deixaram absolutamente nenhuma cidade em pé.
Cumings copia trechos de depoimentos de autoridades dos EUA ao Congresso sobre a Guerra da Coreia, como o do então secretário de Estado Dean Rusk, sobre a finalização da campanha: “bombardeamos cada tijolo que ainda estivesse de pé, qualquer coisa que se movesse. Os pilotos americanos bombardearam a Coreia do Norte inteira para valer”.
Mesmo depois da Coreia do Norte estar de joelhos ao exército estadunidense e a campanha finalizada, ainda sob a égide da doutrina “forever and ever” de MacArthur, o exército norte-americano não se rogou e continuou a arrasar a terra, bombardeando fazendas, barragens, fábricas e hospitais.
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As denúncias de crimes de guerra foram tantas nos EUA que um juiz da Suprema Corte, William Douglas, quis ir ver in loco se eram verdadeiras as notícias de terra arrasada e voltou com um dos depoimentos mais contundentes sobre o ocorrido:
“Eu já tinha visto as cidades europeias destruídas pela guerra, mas eu nunca tinha visto uma devastação parecida com a da Coreia”.
Para os norte-americanos, ou para nosotros que só ouvimos falar da Coreia do Norte depois que um doidivanas apocalíptico começou a fazer testes balísticos com misseis que ele alega serem capazes de conduzir ogivas nucleares nas pontas, pode soar incompreensível esta idiossincrasia do ódio.
Para os norte-coreanos, não obstante, que são lembrados todos os dias das atrocidades sofridas, mesmo que a retórica sirva para manter uma ditadura sanguinária, não é fácil esquecer, antes porque, como não faz muito tempo – o ápice do conflito se deu entre 1950 e 1953 – ainda tem muita gente por lá que ainda trás na família algum rescaldo.
Que fique claro não se prestar esta postagem a justificar o regime norte-coreano e as suas manipulações bélicas, pois toda ditadura e tão odiosa quanto a maior das atrocidades de guerra. Tão somente deve servir para mostrar que para plantar e regar o ódio é preciso ter terra fértil e quem preparou o solo não foi a ditadura dos Kim: ela apenas, ardilosamente, faz a semeadura e se alimenta da colheita.
O pior nesta crônica nuclear é que, de novo, os EUA, com um cochilo da democracia chamado Donald Trump, tão insensato quanto o seu desafeto ao Norte, potencializa o solo, ao invés de arrefecê-lo.