A Justiça Federal acatou integralmente os principais pedidos de duas ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) e anulou as licenças ambientais para a construção de um terminal portuário às margens do Lago do Maicá, área de extrema importância ecológica e social em Santarém (PA). As licenças foram concedidas pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade do Pará (Semas).
A sentença, da última segunda-feira (15), determina a imediata paralisação de todas as obras no local. A empresa Atem’s Distribuidora de Petróleo e o estado do Pará ficam proibidos de dar andamento ao projeto até que as irregularidades apontadas pelo MPF sejam corrigidas, o que, na prática, exige o recomeço de todo o processo de licenciamento ambiental.
O pilar da argumentação do MPF, e um dos fundamentos centrais da decisão judicial, foi o desrespeito ao direito de Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) dos povos e comunidades tradicionais sob risco de impactos diretos do porto. Esse direito é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um tratado internacional com força de lei no Brasil, que torna a consulta uma obrigação legal do Estado antes de autorizar qualquer empreendimento que impacte territórios e modos de vida de povos indígenas e tribais.
Intenso uso pelas comunidades – No processo, o MPF demonstrou que o projeto portuário se insere em uma região de intensa utilização por pescadores artesanais, quilombolas e indígenas. A sentença destaca a proximidade do empreendimento a diversas comunidades, como a comunidade quilombola titulada Pérola do Maicá, localizada a apenas 1,2 km de distância, além das comunidades de Arapema (4,1 km) e Saracura (7,6 km). A área do projeto também afeta diretamente a Praia dos Ossos, um local de intensa atividade pesqueira e de subsistência para as famílias da região.
A Justiça considerou que a Semas falhou gravemente ao não realizar uma consulta válida, tendo apenas enviado um ofício à Fundação Cultural Palmares um dia antes de expedir as licenças, um ato considerado meramente protocolar e insuficiente para cumprir a exigência legal.
Fraude para burlar a lei – Outro ponto crucial da ação do MPF foi a demonstração de uma manobra da empresa para fugir de exigências ambientais mais rigorosas. A Atem’s fracionou o licenciamento em duas etapas:Primeiro, solicitou e obteve licenças para um terminal de cargas não perigosas. Isso permitiu que o órgão ambiental dispensasse o Estudo de e Relatório de Impacto Ambiental (Eia/Rima), que é mais complexo e caro, autorizando o projeto com base em estudos simplificados.
Meses depois, já com as licenças em mãos e as obras em andamento, a empresa protocolou um segundo pedido para o mesmo local, revelando o real objetivo do terminal: o transporte e distribuição de combustíveis, considerados produtos perigosos pela legislação.
A Justiça reconheceu a unidade do projeto portuário e concluiu que a estratégia de dividir os pedidos foi uma forma de burlar o devido processo legal ambiental. A sentença anula tanto as licenças já emitidas quanto os processos administrativos em andamento, afirmando que a ausência do Eia/Rima, diante dos impactos significativos do empreendimento sobre o meio ambiente natural e sociocultural, é um “vício essencial e invalidante”.
A importância do lago – A ação do MPF ressaltou a sensibilidade da área afetada. O Lago do Maicá é descrito no processo como o “corpo hídrico mais importante da área urbana de Santarém em termos de produção pesqueira” e um “berço de várias espécies da ictiofauna [conjunto das diversas espécies de peixes que habitam um determinado ambiente aquático] do Baixo Amazonas”. A instalação de um porto para movimentar combustíveis no local representa um risco elevado de acidentes com vazamento de material tóxico, o que poderia causar danos irreparáveis à biodiversidade e à principal fonte de subsistência das comunidades.
Obrigações estabelecidas – Com a decisão, qualquer novo processo de licenciamento para o terminal portuário só poderá ser considerado válido se, antes de qualquer licença, forem cumpridas as seguintes determinações:Realização da Consulta Prévia, Livre e Informada, nos moldes da Convenção 169 da OIT;
Elaboração de Estudo de Componente Indígena (ECI) e de Estudo de Componente Quilombola (ECQ); e
Apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (Eia/Rima) completo, com abordagem socioantropológica, que seja aprovado pelo órgão ambiental competente e precedido de audiência pública.
A Justiça indeferiu, por ora, o pedido de demolição das estruturas já erguidas, considerando a medida “extrema e desproporcional”, mas ressalvou que a utilização futura dessas construções dependerá da total regularização do licenciamento ambiental.
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